14/02/13

O valor do dinheiro

O dinheiro é um fator determinante de muitas decisões em nossas vidas. Mas falar sobre esse assunto nem sempre é confortável em culturas como a nossa, em que o dinheiro tem um caráter privado, associado ao sucesso ou ao fracasso pessoal. Ou mesmo em que o dinheiro tem um caráter altamente ambivalente, uma vez que é fonte tanto de benefícios pessoais quanto de males sociais, como a corrupção. Em vista disso, é muito importante para os pais falar sobre dinheiro com os filhos, seja para orientá-los a desfrutar daquilo que o bom uso do dinheiro pode lhes proporcionar ou para ajudá-los a evitar problemas financeiros. Na entrevista a seguir, a terapeuta familiar Valéria Meirelles, especialista em orientação sobre educação financeira e organizadora do livro Mulher do século XXI (Ed. Roca), alerta: “É difícil entender que o dinheiro, em uma sociedade capitalista, é uma ferramenta, um meio de troca para uma vida digna”. E aponta caminhos para educar crianças e jovens a administrar seu dinheiro de forma a conquistar seus objetivos eticamente.

Por que existem tabus para falar sobre dinheiro?
Valéria Meirelles – No Brasil, o dinheiro é uma mistura entre sagrado e profano. Há uma ambivalência. As pessoas querem ter, querem mostrar que tê, mas não têm abertura e naturalidade para falar sobre esse assunto, mesmo entre pessoas próximas, às vezes até mesmo entre o próprio casal. Isso porque o dinheiro ainda é muito privado, está muito ligado à nossa autoimage, à nossa autoestima. Na nossa sociedade, o sucesso é medido pela quantidade de dinheiro que você te, infelizmente. Então, falar do seu dinheiro implica falar de você, da sua competência. Aí a ambivalência. Porque, ao mesmo tempo que o dinheiro é muito bo, tem o outro lado. Se pensarmos no contexto político, por exemplo, o dinheiro é a grande ferramenta de corrupção. Ao mesmo tempo que é bom e traz conforto, corrompe. O tempo inteiro a gente vive com mensagens ambivalentes a respeito do que é o dinheiro. E é difícil entender que o dinheiro, em uma sociedade capitalista, é uma ferramenta, um meio de troca para uma vida digna.

Que lugar e papel tem o dinheiro na dinâmica familiar?
Um aspecto muito importante diz respeito às mensagens transgeracionais que recebemos. São as mensagens que a gente recebeu a respeito de dinheiro de nossos pais, avós e até de antepassados. Essas referências podem impactar o estilo financeiro das pessoas. A mais forte é a vivência que a pessoa teve, pois o modelo de uso do dinheiro, independentemente do que se converse com os filhos, é determinante. Estou preparando uma tese em que eu faço a seguinte pergunta: quem foi o seu principal orientador do uso do dinheiro? A resposta é infalível: o pai ou a mãe. E ainda que os pais não falem sobre esse assunto, os filhos vão observar como eles fazem. Vão absorver qual é o significado do dinheiro para aquela família, seja para o bem ou para o mal.

Como se educa uma criança para lidar com dinheiro?
É interessante começar desde bem cedo. Desde os três, quatro anos. Por exemplo: vai ao supermercado e combina o que comprar. Diga: “Filho, você pode escolher um pacote de bolacha, não dois”. Ou, quando ele já sabe ler, peça ajuda: “Ajude a mamãe a procurar o que está mais barato hoje”. São pequenas atitudes que constroem a base de tudo, que são os valores a respeito do dinheiro.

Mas você ressalta que o modelo é determinante. Esse ensinamento precisa ser acompanhado de exemplos, correto?
Não há dúvida. Os pais têm de acreditar no que estão falando para os filhos. E isso não é só na questão do dinheiro, claro! Não fazer só para “ensinar” e depois a criança acompanha a mãe em um shopping, detonando o cartão de crédito em uma liquidação e ainda se gaba disso com as amigas. Portanto, uma palavra de ordem é “coerência”. Porque a criança é hábil em perceber as incoerências dos pais e entra nos flancos.

Quais as regras para a mesada?
É fundamental entender que a mesada é apenas um instrumento de educação. É para ensinar a criança ou o jovem a lidar com o próprio dinheiro e, acima de tudo, com a vida. Então, tem de ser levada a sério. Primeiro, é preciso deixar claro o que a mesada vai cobrir. Se você combina que vai dar R$ 20 para cinema, lanche… porque é óbvio que não se trata da manutenção do filho, a mesada é pedagógica. Assim, se você diz que vai dar a ele todo mês, todo dia 4, não pode falhar. E se deu dia 4 e acabou dia 10, paciência. Ele deve esperar a próxima para fazer os gastos. Eu vejo uma grande dificuldade dos pais em cumprir o trato feito com os filhos. É comum darem um pouco a mais, e dão quando eles acham que devem dar a mais, sem regras definidas. Isso deseduca.

Qual valor deve ter a mesada?
Até dez, onze anos, eu recomendo R$ 1 por idade. E com os pequenininhos é mais eficaz uma “semanada”. Se você pensar em valores absolutos, parece pouco, mas o objetivo é educar. A partir dos doze, treze anos, já se pode dar um pouquinho mais e passar para a mesada propriamente. Mas tem de tomar cuidado para não pôr a perder o processo. A mãe entra na padaria, os docinhos estão embaixo, às mãos da criança, que pega e pede: “Compra pra mim?”. Qual deve ser a resposta? “Compra você, com o seu dinheiro. Você ganhou dinheiro para isso.” “Ah, eu não quero gastar meu dinheiro.” “Tudo be, é a sua escolha. Dinheiro para comprar a bala você tem. Prefere não gastar.”

Aí a criança faz a clássica choradeira em público…
Então, o que a gente vê é que nós adultos andamos muito cansados. E falar “não” dá trabalho, leva tempo… as crianças não aceitam um “não” na primeira. Muitas vezes é mais fácil e rápido concordar. Ser firme e cumprir o combinado é a parte difícil.

Dentro do papel pedagógico, a mesada pode ser usada como instrumento de coerção, punição?
Absolutamente. Mesada não pode ser moeda de troca. Se você quiser estragar o objetivo da mesada, diga: “Você não fez tal coisa, ou fez tal coisa, e por isso eu tiro seu dinheiro”. Mesada não pode ser cortada porque a criança não fez lição ou porque está de castigo. A questão é saber por que ele fez ou deixou da fazer tal coisa, entender o que está acontecendo. Mesmo nos casos mais graves, de adolescentes que estão bebendo ou usando droga, você até pode cortar o dinheiro como uma das medidas de contenção. Mas isso está longe de resolver o problema. E não vai adiantar cortar o dinheiro se não houver outra atuação, mais de fundo. Até com ajuda de um profissional, se necessário. A grande questão é: o está acontecendo para que meu filho esteja tendo esses comportamentos? Só tirar o dinheiro é tapar o sol com a peneira, ele pode usar outros recursos, vender o tênis, pedir dinheiro ao amigo.

Essa é uma situação bem comum. Muitos pais usam o dinheiro como instrumento para fazer valer seus desejos.
É verdade. Por isso é bom compreender que na relação de poder, você exerce o autoritarismo e não a autoridade. A autoridade conduz, o autoritarismo impõe. E aí vai gerar até um estímulo aversivo. Tenho pacientes que dizem: “Meu pai sempre mandou em nós com o dinheiro”. Outro paciente contou que tinha um pai extremamente bravo. Ele não dava presente, ele dava dinheiro para compensar o temperamento difícil. E outra contou que os pais, por não terem tempo para ela, por viajar demais, compensavam dando dinheiro. Quer dizer, essas são pessoas que podem desenvolver comportamentos de desequilíbrio em relação ao papel do dinheiro em suas vidas. Outro exemplo de uso equivocado do poder do dinheiro é “comprar” a criança. “Arruma o seu quarto que eu te dou tanto…” Arrumar a cama ou deixar o banheiro em ordem para o próximo é uma obrigação para quem vive em um meio coletivo. Não se pode comprar essa tarefa. O estar junto requer essa colaboração, que deve ser ensinada, cultivada, não comprada.

Como ensinar uma criança a poupar?
É importante passar noções de poupança desde pequeno. Com a velha e boa técnica do cofrinho. Você vai colocando as moedas e ensinando. Ensinando, principalmente, a esperar. O grande mote para o bom uso do dinheiro, na vida, é saber esperar. Não ter isto agora, mas ter uma estratégia para ter amanhã. Quem não consegue esperar raramente vai fazer bom uso do dinheiro, assim como bom uso da comida e outras coisas. Mas aqui nós estamos falando de dinheiro. A grande dificuldade hoje, em uma sociedade de alta velocidade das tecnologias, é conseguir esperar alguma coisa. É preciso cuidado com o ritmo tecnológico. Eu já vi pessoas trocarem celular de filho a cada seis meses. Não que eles não mereça, mas o que preocupa é o dar indistintamente, sem uma conquista, sem um esforço.

Mais uma vez, aí é importante dar o exemplo. Como não trocar o celular do filho se você troca o seu?
É fato, os próprios adultos têm imensa dificuldade em poupar. Na minha pesquisa, eu perguntei quanto as pessoas poupam por mês. Não houve um padrão nas respostas. E pior. Não só não poupa, como estão entrando em cheque especial loucamente. Muitos consideram o limite do cheque especial o seu limite. Porque estão imediatistas, não sabem esperar para fazer o bom uso do dinheiro. Não se trata de não gastar, mas de gastar de forma correta. Então, você tem de proteger a criança ao máximo desse consumismo, estabelecer limites. Pensar que está fazendo um bem e não um mal. Os pais têm medo de perder o amor dos filhos e acabam cedendo. Não, eles não vão perder esse amor por educar. Mas podem até perder, se fizerem tudo o que o filho quer. É preciso dizer não e dar conta da cara feia. Ou seja, é dificílimo educar filho, mas é necessário.

O que é um bom uso do dinheiro?
É consumir sem inadimplência. Não se trata nem de não ter dívida porque muita gente financia imóvel, carro, mas com parcelas que cabem dentro do orçamento. Você pode fazer uma dívida que cabe no seu bolso e ajuda a realizar um sonho. O problema é o uso indiscriminado do dinheiro, que não permite fazer reservas para imprevistos e para o futuro. Já vi pessoas completamente penduradas nos cartões que não param de gastar. Isso é uma patologia financeira. Por isso, eu digo: viva com o que você ganha e ensine isso a seu filho. Não ache que ele vai ficar “traumatizado” se não tiver o que “todo mundo tem”, se não for aonde “todo mundo vai”. Ele vai ficar “traumatizado” se não tiver sido educado para aguentar um momento difícil, uma contrariedade. Mais um aspecto importante que eu faço questão de ressaltar entre os bons usos do dinheiro é a generosidade, a doação. Doar é um dos bons aspectos do uso do dinheiro. Você sai da referência de si, inclui o outro. A criança juntou dinheiro para comprar um brinquedo e você nesse momento pode mostrar: agora que você tem o novo, vamos dar aquele com que você não brinca mais?

Os filhos devem saber quanto os pais ganham?
Não necessariamente. Mas eles têm de aprender a tomar cuidado com o desperdício. Não importa quanto se ganha, não é para deixar luz acesa, demorar horas no banho. É preciso passar o respeito ao dinheiro. E participar, si, da realidade financeira da família. Se não há condições de mandar a criança para a Disney com os amigos, essa condição precisa ser colocada com clareza. E, insisto, com coerência. Não se pode falar que não tem dinheiro, mas aí o casal vai passar o fim de semana em Buenos Aires.

Em situações extremas, como o desemprego, por exemplo, os pais devem compartilhar suas angústias com os filhos?
Eu acho que é uma questão de realidade. A família é uma microcélula social. É na família que a gente aprende a ir para o mundo. Se dentro da família você tem um mundo protegido, como você vai aprender a se defender lá fora? É claro que tudo depende da idade dos filhos. Mas sempre se deve contar a verdade, porque, acima de tudo, a criança percebe que algo está diferente. Você pode dizer: “O papai ou a mamãe perdeu o emprego, não sei quanto tempo vai levar para eu me recolocar. A partir de agora, vamos ter de controlar alguns gastos. Reduzir o uso de celular, viagens…”. Tem de compartilhar, mostrar que está lutando para reverter o quadro. O que ajuda é pedir a colaboração de todos.

Qual o peso do dinheiro na escolha profissional?
A primeira preocupação deve ser identificar as expectativas dos pais e dos filhos em relação à profissão dos filhos. O que você quer para o seu filho e o que o seu filho quer para a vida. Porque essa questão da escolha da profissão é complicada. Você tem de decidir muito cedo o que vai ser para o seu futuro. Não que a decisão não possa ser mudada, mas esse é um momento crucial, quando você tem pouca experiência de vida para tomar decisões. Eu gosto de trabalhar com as definições de valores para a família, para o jovem. Uma vez eu perguntei a um garoto o que ele queria ser e a resposta foi: eu quero ser bem rico. Eu fui em frente e disse: mas o que você gostaria de fazer? Ele disse que, na verdade, gostaria de ser biólogo. Só que ele queria “ter um Porsche na garagem”. E eu questionei: mas dá para ter um Porsche na garagem com essa profissão? Aí a gente fez um trabalho e viu que, na época, existia um idealismo de um menino de 15 anos que queria salvar o planeta. Hoje ele faz direito e trabalha em um megaescritório. Não sei se chega ao Porsche, mas talvez ele possa ser um advogado ambientalista, por exemplo, e juntar as coisas. E o fato de ele estar indo bem na advocacia mostra que havia um fundamento para essa escolha.

Em algumas escolas, há aula de educação financeira. Ensinam a criança até a aplicar na bolsa de valores. O que você acha disso?
A ideia é boa. Só precisa ver como é aplicada. O governo federal tem um programa chamado Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef), que começou a trabalhar essa formação em escolas públicas. Acho fundamental mostrar o dinheiro como uma ferramenta para uma vida digna. Para garantir, no mínimo, habitação, saúde e educação. Para que as pessoas atinjam seus objetivos eticamente.

Fonte: Guias de Educação